[RP] Damaged people are dangerous

Patient

As lembranças se materializavam lentamente, como bolhas vindo à tona da escuridão do mais profundo oceano.
Três pessoas sobre uma cama, dentro de um grande quarto. As das pontas eram mais velhas, quase idosas, sendo um homem e uma mulher. Entre esses dois, havia uma moça. Todos olhavam na direção da porta, na direção de Alice. A cada instante havia alguma expressão diferente neles, sendo elas de medo, desgosto e raiva. Pareciam prestes a falar algo àquela na entrada do cômodo.
— ... está bem? Vou entregar o que você pediu amanhã, já que você está saindo mais cedo hoje... Alice?
Despertada de seus devaneios, Alice Proudmoore somente assentiu ao que a secretária havia falado. Momentos de fuga da realidade não era algo que ela gostaria de ouvir dos funcionários da universidade ao seu respeito. Dependendo da forma como isso chegasse a reitoria, seu cargo estaria em perigo.
Quebrando o silêncio na sala da diretora, o celular de Proudmoore avisava que faltavam dez minutos para sua primeira sessão com um psiquiatra. Mordendo os lábios inferiores, Alice desligou o despertador e ajeitou sua bolsa. Precisava se apressar para não causar uma primeira má impressão de paciente. Com seu celular em mãos e bolsa no braço, apressou seu passo em direção ao carro.
Devida a sua necessidade pessoal de não se atrasar, irritou a si mesma quando viu as horas em seu relógio de pulso quando se encontrava no hospital. Ainda eram dezesseis horas e cinquenta e seis minutos, o que significava estar adiantada. E, de acordo com as atendentes, a doutora que a atenderia não estava presente.
Próxima a porta da sala onde seria atendida, a diretora permaneceu de pé. Sua ansiedade pela primeira vez revelando seus pensamentos mais profundos e obscuros a alguém, não a permitia esperar sentada.

nervous

Conhecer novas pessoas nunca foi um desafio para Alice. Por grande parte da sua vida foi mantida afastada da sociedade para receber somente a educação que profissionais podiam lhe proporcionar. Poucas as vezes ouvira sobre o mundo, além do que era dito nas aulas de história, sociologia e quando os professores comentavam sobre as notícias mais importantes da década. Mas, apesar desse tempo desconectada do mundo, não passou a temer o que e quem se encontrava fora das paredes da casa de seus pais. O que ela sentia — e permanece sentindo a respeito —, só pode ser descrito como curiosidade.
— Olá, sou Alice Proudmoore e eu preciso confessar uma coisa — revelou, abruptamente, para a doutora Weiss. — Essa é a minha primeira vez numa sessão com uma psiquiatra. Então... bem, não sei como isso irá começar e prosseguir. — Logo atrás da doutora, Alice a seguiu para o interior do escritório.
Apesar de há poucos instantes estivesse sofrendo de ansiedade e estresse, a diretora se encontrava nervosa, desejando que a conversa terminasse logo. Esse sentimento a intrigava, pois ela não se recorda de já ter passado por algo semelhante. Pessoas nunca a perturbaram o suficiente para deixa-la nesse estado. O que a mantinha ainda ali era o seu desejo de conhecer a doutora e o resultado da sessão. Até talvez pudesse descobrir o porquê dessa sensação esquisita, caso a doutora fosse tudo aquilo que ouvira.

daily

Seguindo os pedidos da doutora, Alice entrou na sala e fechou a porta logo em seguida. Mantinha um pequeno sorriso simpático em seus lábios para esconder o que realmente sentia, um incômodo nervosismo. Para sua sorte, esse sentimento parecia ter seus dias contados, já que a psiquiatra disparava ordens e informações de uma forma um tanto rude. Como contragolpe, Alice manteve o desenho da boca ainda o mesmo.
— Tudo bem — disse a doutora enquanto se ajeitava em seu assento e pensava como começar. — Eu gostaria de começar a falar sobre meus dois filhos, pois não tenho grandes problemas em relação a eles... — comentou enquanto, sem perceber, desviou o olhar que antes estava em Lenore, para o chão. — September parece ter nenhum problema na universidade, ou é muito bom em escondê-los de mim. Já a Wendy possui alguns pequenos desvios do que é certo devido às más influências, mas acredito que ela esteja melhorando.
Wendy, assim como September, foi adotada por Alice. Apesar de não conhecer toda a vida da garota, a mãe desses jovens acredita ser culpada pelos erros que cometem. Sua ausência em casa devido ao trabalho talvez proporcionasse o fácil acesso a criminalidade e, sendo assim, não haveria quem colocar a culpa além de si mesma por permitir isso.
Percebendo que já estava inerte em seus pensamentos, Proudmoore voltou a encarar a doutora.
— Essa semana foi consideravelmente boa — disse tentando convencer mais a si mesma do que Lenore. — Minha preocupação talvez sejam os jovens que não temem os perigos da noite. — Na realidade, Alice temia somente a burocracia que é gerada com a morte de alunos, além do fato de precisar conversar com familiares e colegas dos falecidos que, inevitavelmente, culpavam o ambiente escolar pela perda deles. — Isso tem feito com que eu tenha grande dificuldade em dormir... Há vezes que desperto no meio da noite e não consigo voltar ao sono — relatou uma verdade.

confess

Ouvindo as palavras da doutora Weiss, Alice fechou suas pálpebras e apertou seus lábios contra eles mesmos. Ninguém a tratava de forma rude há muitos anos e como estava ali por vontade própria, não acreditava ter razão para fazer com que ela parasse de ter essa atitude. Pacientemente, começou a encará-la.
Lenore requisitou o passado da diretora e sua filha adotiva. Como o esperado de uma psiquiatra, buscava saber mais das histórias que menos agradavam na memória de seus pacientes. E sendo ela experiente, escolheu uma das melhores no quesito de incômodo.
— Nosso primeiro encontro, bem... — enquanto procurava por palavras certas, mergulhou em suas lembranças até encontrar a da mais antiga onde sua filha se encontrava.
Não havia pedido conselhos aos seus colegas de trabalho sobre como é adotar alguém, nem mesmo ao seu amigo e antigo mordomo, William. Proudmoore desacreditava ser necessária a ajuda de outros nessa decisão, ademais, ela fora adotada e sabia muito bem o que um órfão desejava. A primeira criança avistada ao passar pela porta e foi assim, sem hesitação, que Wendy fora adotada.
Durante o caminho para a nova casa, a garota dona de um olhar capaz de intimidar até mesmo alguns adultos, manteve-se em silêncio. Não foram precisos muitos instantes para ser notado que Alice detinha a voz ativa no que viria a ser um relacionamento de mãe e filha. Herança que a diretora recebera dos pais adotivos, uma aura intimidadora que poucos em sã consciência ousam ultrapassar.
Como de praxe, William socializou-se rapidamente com a nova membro da família. Em pouco tempo ele a convenceu que estudar fora de casa seria mais gratificante e Alice concordara com a opinião, lembrando que naquela idade não tinha permissão de brincar ou sequer dialogar com outras crianças da sua idade.
Recebendo liberdade para fazer quase tudo que desejasse, acabou em algum momento se envolvendo com o que não devia. Entretanto, ela escondeu suas artimanhas por um longo tempo da supervisão decadente que recebia de sua mãe. Quando então pela primeira vez cometeu um deslize em sua pose de boa filha, Alice foi profundamente magoada. Não apenas pelo o que sua filha fazia, mas por fazê-la se sentir culpada pelo que fizera.
— Será que eu causei isso a ela quando recusei o novo modelo de celular que ela tanto queria? — questionou olhando em direção a Lenore. Sua voz vacilou por um momento. Com vergonha, olhou para o canto da sala. — Eu ainda lembro da nossa primeira briga...
Quando o mordomo relatara o que havia descoberto sobre a garota, Alice não conseguiu controlar sua fúria e descarregou diversas palavras desagradáveis — sendo que até hoje se arrepende de algumas. Aquilo criou uma pequena barreira entre as duas que começou a crescer conforme as brigas se tornavam constantes, diminuindo somente no ano em que Wendy entrou na universidade.
Na sala da doutora Weiss, Alice descansou suas costas em seu assento e mais uma vez fechou suas pálpebras. Sentia seu corpo palpitar devido ao que o estresse do momento provocava ao seu coração, todavia, um grande alívio a fez sentir leve. Estava libertando algo guardado há muito tempo.

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Falando tanto a respeito da sua história com a filha adotada, Alice não pôde notar a inutilidade de muitos comentários da psiquiatra. Encontrava-se quase inerte em lembranças, sendo acordada delas com o café que a médica trouxera, surpreendendo a paciente que não havia notado sua saída.
Os goles na bebida eram lentos, porém pequenos. Por estarem demasiadamente quentes, os lábios sofriam ao contato, assim como a língua e a garganta. Além do fato que faltava açúcar, deixando aquela generosidade da doutora ser transformada em uma espécie de tortura.
— Antes de começar, saiba que não gosto de falar sobre meus pais. Nem da minha infância — o tom de Alice era sério e, assim como seu olhar, levemente assustador.
Por ter sido deixada no orfanato ainda muito nova, a senhora Proudmoore teve como primeira figura materna sendo uma freira que cuidou muito bem dela — apesar de esquecer seu nome após ser adotada.
Quando foi escolhida por dois desconhecidos, apenas demonstrou sua felicidade a eles com um sorriso estampado no rosto. Contudo, nenhum carinho foi recebido em troca por aquele casal, nem mesmo seus nomes, pois eles não desejavam que ela os chamasse.
William, o mordomo que trabalhou por muitos anos na família Proudmoore, simpatizou-se com a nova chefe e acabou por lhe informar os nomes de seus pais adotivos. 
— Meus pais se chamavam Robert e Eva Proudmoore — respondeu Alice. — Eles tinham uma grande empresa e muitos negócios pelo país — explicou sendo indiferente a respeito dos pais. — Sim, eles eram muito ricos.
O senhor e senhora Proudmoore passaram todos os anos, desde que adotaram uma garota, dando muita atenção a primeira filha. Ela estava doente e por isso era a maior despesa, apesar dos pais não se importarem com isso. Alice comandaria a empresa e manteria o nome da família, o que realmente importava para Robert.
— Quando todos morreram, a minha vida sofreu uma grande mudança e eu vim parar aqui — finalizou. Sem mais a expressão de quando estava perdida em sua própria cabeça, Alice levou seu corpo para a ponta de seu assento, ficando mais próxima de Lenore. — Diga-me, doutora Weiss, você acha que meus pais têm alguma relação com a minha insônia?

farewell

Wendy é a culpada pela insônia de Alice, de acordo com o que a psiquiatra afirmara. Isso deixou a mãe um pouco surpresa por um instante, pois, apesar de ser óbvio, nunca havia chegado a essa conclusão e talvez não chegasse sem ajuda.
Alice pensou em se desculpar por não respeitar a doutora, mas não o fez.
— Muito obrigada — disse enquanto pegava a prescrição de seu remédio para dormir. — Sinto que isso foi inesperadamente produtivo.
Sem abraço ou aperto de mão, Proudmoore ajeitou sua bolsa após se levantar da cadeira e começou a andar em direção a porta. Não desejava fortalecer um laço com a doutora, pois, para ela, isso não existia entre elas. Sozinha, afastou-se dali apenas recitando em alto e bom som:
— Até a próxima sessão, doutora. Até.